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Mas afinal, o que é ser um homem de Deus?

Nós, evangélicos brasileiros, ao longo dos anos, produzimos quase que um linguajar próprio, exclusivo e às vezes só entendido mesmo por quem “fala a mesma língua”. Sem dúvida, esse “evangeliquês” bebeu muito da tão querida e amada versão da Bíblia, a Almeida Revista e Corrigida, com seu português arcaico, belo, elegante, mas “pesado”, que a edição de 1995 amenizou, mas não retirou, até por ser esse mesmo o estilo da Corrigida, como bem sabemos. Incluímos assim em nosso vocabulário palavras e expressões que nem fazem mais parte do nosso português corrente, coloquial, do nosso dia a dia, ou ainda, incluímos palavras que mudaram totalmente de sentido, mas que usamos com os sentidos que já não tem mais... Herança da Corrigida. Como exemplo, consideremos a palavra “buzina” que em Joel aponta para um instrumento de sopro, mas que em nosso contexto nos faz lembrar da buzina de um carro – coisas bem diferentes uma da outra e com finalidades bem distintas. Tal vocabulário passou a permear nossas homilias, liturgias e até nossas conversas à mesa. Varão, alma, vaso, mistério, coabitar, concupiscência, dentre outras, são algumas dessas palavras que delineiam nosso “evangeliquês”. Diante disso, chego a concluir que temos diante de nós o desafio de comunicar o evangelho numa linguagem mais atual, fluente e que seja compreensível ao não crente, pois esses termos geralmente são mais familiares a nós evangélicos e não ao descrente. Afinal de contas, uma comunicação só é eficaz se a linguagem empregada for entendida por ambas as partes.


Nesse texto, desejo discorrer em torno de uma dessas expressões emblemáticas que marcou muito a Igreja evangélica brasileira: a expressão “homem de Deus”. A usamos para nos referir a algum homem cristão que tem uma conduta exemplar. Muitas vezes usamos para nos reportar a algum líder, pregador, algum teólogo, etc. Usamos essa expressão em relação a pessoas que estão próximas e distantes de nós, que conhecemos bem ou não. Mas nesse momento, em que atravessamos uma séria crise ética no seio da Igreja, é pertinente perguntar pela real e ideal identidade do cristão. Quem é o crente, de fato? E quem ele deve ser? O que se deve esperar dele e de sua conduta? Essa expressão tão usada por nós em referência a alguns homens deve muito ao texto de 2 Reis 4.9 onde lemos a fala da mulher de Suném: “E ela disse a seu marido: Eis que tenho observado que este que passa sempre por nós é um santo homem de Deus”. Assim, como a sunamita, vemos também os nossos homens de Deus passar por nós. Minha proposta nesse texto é buscar delinear então quem é de fato, esse homem de Deus, mas começo partindo daquilo que não é tão destacado por nós quando vamos fazer essa caracterização. Dizer que um homem de Deus é ser um homem de oração, de piedade cristã, de leitura e estudo da Bíblia, etc., etc., torna-se quase redundante. É chover no molhado! É inegável que a expressão “homem de Deus” carrega em si um peso ético, que se espera de quem a recebe. Em minha experiência ministerial e pesquisa teológica, contudo, tenho visto como os crentes idealizaram sobremaneira essa imagem do “homem de Deus”, criando um ser que muitas vezes nem existe de maneira factual; ele só existe mesmo em nossas próprias mentes. Assim, nos desiludimos com homens, que são reais, e daí acontece até de sermos tomados por algumas indagações sobre o real significado de uma vida consagrada a Deus. Já aqui declaro que não pretendo construir uma abordagem secularizada, que parte de um evangelho fácil, “adaptável”, desvirtuado da proposta bíblica. Não! Mas embora comprometida com a verdade da Palavra de Deus, essa abordagem procura ser realista, e toca em feridas, mexe em assuntos não tão mexidos e olha para alguns cantos que passam despercebidos por nós. Então vamos lá?


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Em primeiro lugar, ser um homem de Deus é ser homem também. Não esqueço de uma história que minha mãe contava, muito engraçada, a respeito de uma irmã que estava doente e que ela foi visitar junto com outros membros de sua congregação. Dentre eles, estava um pastor. Ao chegarem lá, a enferma pediu que todos os homens saíssem do quarto, porque trataria de um assunto íntimo, e quando o pastor foi saindo, ela disse ao líder: “Pastor, só os homens, o senhor não!” Ele então, prontamente, respondeu: “Mas minha filha, eu também sou homem!” Pois é. Na mente de muitos cristãos, um homem de Deus não é um homem, no melhor sentido da palavra. Mas homem que é homem gosta de mulher, é irremediavelmente atraído pela anatomia feminina, se irrita, se estressa, fica mal humorado, gosta de contar vantagens relacionadas à sua estrutura física, geralmente aprecia aventuras e atividades corporais, é impulsivo, deseja filhos, quer ter amigos, dentre outras características genuinamente masculinas. Poderíamos até mencionar escrever um livro e plantar uma árvore. No meu caso em particular, ainda falta a árvore... No nosso contexto cristão, no entanto, o homem de Deus é aquele que é visto como um homem que não tem nada disso. Criou-se uma verdadeira caricatura em torno desse “ser um homem de Deus”. Lembro-me que era garoto e já ouvia, em nossas igrejas, que ser tentado não é pecado, pecado é ceder à tentação. Hoje, me pergunto: “Será que esquecemos isso?” A vida de um homem de Deus é a vida de um homem como qualquer outro, em todos os aspectos. A diferença reside no seu compromisso com o evangelho e em como ele se conduzirá, com a graça de Deus, em meio aos desafios do percurso.


Mas o fato é que as pessoas colocam um fardo sobre nós (perdoe-me pela presunção de incluir-me nessa classificação) muitas vezes pesado demais. Assim, quando nós, homens de Deus, manifestamos condutas e comportamentos inerentes a qualquer homem, como por exemplo, gostar de mulher, ser irremediavelmente atraído pela anatomia feminina, se irritar, se estressar, ficar mal humorado, gostar de contar vantagens relacionadas à sua estrutura física, geralmente apreciar aventuras e atividades corporais, ser impulsivo, desejar filhos, desejar ter amigos, dentre outras características genuinamente masculinas, acabamos sendo tripudiados e duramente criticados. Os olhares e avaliações inquisitórias não tardam a vir sobre nós golpeando-nos sem caridade. Assim, o ouro é jogado fora junto com o cascalho. Deixamos de ser homens de Deus no momento em que expressamos nossa masculinidade, algo inevitável para nós. Já não somos mais considerados pelo que há de excelente em nossa conduta cristã: a demonstração do domínio próprio, o controle sobre os desejos impuros, a fidelidade conjugal, a santidade de vida na separação daquilo que não agrada a Deus, a demonstração do amor ao próprio como ato concreto e contínuo, uma vida de piedade cristã, entre outras características. As pessoas parecem se esquecer de que nós, homens de Deus, também caminhamos continuamente para a maturidade cristã. Assim, já não somos quem éramos, e seremos quem ainda não somos. Se aqueles que nos consideram homens de Deus entendessem essa verdade a respeito da vida cristã, certamente seriam mais misericordiosos conosco.


Não me esqueço de uma vez, quando conversava com um amigo e de repente passou um pastor que eu conhecia, falou rapidamente comigo e foi embora. Na sequência eu disse ao amigo com quem conversava: “Esse pastor é um profundo conhecedor das Escrituras. Apesar de ter alguns problemas pessoais muito sérios, é um amante das Escrituras”. Então esse amigo, sabiamente, me respondeu: “Mas é isso que faz dele um homem”. Uau! Ser homem é, inevitavelmente, ter problemas, mesmo para um homem de Deus. É curioso pensar que Jesus dá a Pedro a promessa de lhe entregar as chaves do Reino dos céus (Mt 16.19), mas também lhe diz o “quando te converteres” (Lc 22.31b). Quantas vezes os discípulos mostraram fraqueza, traíram a Cristo, abandonando-o em seu momento mais atroz, mas mesmo assim Jesus foi ao encontro deles depois de tudo isso. Aliás, em nossas vidas, muitas vezes, Jesus continua sendo Aquele Jesus que “se aproximou e ia com eles” (Lc 24.15).


Outro grande e tremendamente equivocado conceito que existe em torno da figura de um homem de Deus é o de que ele precisa se mostrar sempre forte e inabalável, afinal, ele é um homem de Deus. E homens não choram... É o que dizem... “Sempre firmes”, as pessoas bradam. “Seja homem!”, exclamam. O homem de Deus, especialmente se for obreiro, “não pode jamais se mostrar triste, desanimado, diante da congregação”, foi o que eu ouvi de líderes cristãos que tive. Mas afinal, nós, homens de Deus, o que somos? Temos nós, por acaso, o gene mutante do Wolverine que não envelhece nunca e que se autorecupera instantâneamente? Somos seres humanos ou máquinas autômatas previamente programadas que não admitem aquelas nuances típicas do comportamento humano? Porque até onde sei, pela Bíblia, Teologia, Antropologia Teológica, Filosofia, Psicanálise e da Pedagogia, homens choram sim, sentem, sofrem, se cansam, erram e aprendem, recalcam sentimentos, somatizam emoções, se frustram com expectativas não alcançadas... Eles sangram... Inclusive por dentro. Essa “visão” do homem de Deus como alguém sempre alegre, inerrante, sempre visivelmente inabalável, submete-nos assim a uma “canga” por demais exigente, rígida, inflexível... Inquisitória, eu diria. Nossos erros serão assim sempre maiores do que o dos “meros mortais”. Nessa compreensão (compreensão!?), os crentes esquecem-se que o Elias que faz aquela poderosa oração de 1 Reis 18.36 – “Ó Senhor, Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, que hoje fique conhecido que tu és Deus em Israel e que sou o teu servo e que fiz todas estas coisas por ordem tua” – é também o mesmo que faz a oração do capítulo 19: “Já tive o bastante, Senhor. Tira a minha vida” (v. 4). O Moisés manso, o mais manso de todos os homens de Deus, é também aquele que fere a rocha com seu cajado. O homem de Deus chamado Abraão, e pai da fé, é também aquele que mente quando sob pressão e tenta ajudar o Todo-Poderoso deitando-se com Hagar. Davi, o “homem segundo o coração de Deus”, é também o que adultera, mente e manda matar. E Paulo, “meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” (At 9.15), é o mesmo que se mostra rígido, inflexível e não permite que Marcos vá com ele. Como podemos ver, homens de Deus também são homens, e de tão homens que são, estão também sujeitos às mesmas demandas de todos os homens. Sendo de Deus, todavia, aprendem com Ele e aos pés Dele, continuamente.


Assim, o que significa então ser um homem de Deus? Cabe-nos perguntar. Ao que eu respondo: Ser um homem de Deus é ser homem como qualquer homem, ter os mesmos instintos e impulsos, de ordem emocional, sexual, etc., mas ao mesmo tempo, não se comportar como se comportam todos os demais homens. E graças a Deus por que nossos instintos permanecem! Até porque foi Ele que nos fez assim. Fato é, todavia, que o pecado afetou a criação. A diferença de um homem de Deus para um homem que não é homem de Deus é que ele tem seu comportamento e mente crucificados junto com Cristo. Ele reconhece que sua natureza, sem o poder da graça, é corrompida e propensa ao pecado. Daí, depende de Cristo e vive Nele. O que me esforço para trazer a tona nessa reflexão é que não existem super-homens de Deus, existem sim, homens de Deus, com suas carências, necessidades, aflições, nuances, etc., mas sempre levadas a Cristo em oração. Ser um homem de Deus é ser de Deus. É fazer a vontade Dele acima de tudo, mesmo continuando a ser homem. Assim, aos que me lêem, aos que me conhecem, aos que me amam, e até aos que não me consideram, concluo afirmando que desejo ser cada vez mais um homem de Deus, mas sem deixar de ser homem...


xxx


Autor. Roney Cozzer é  mestre em Teologia pelas Faculdades Batista do Paraná (FABAPAR), na linha de pesquisa Leitura e Ensino da Bíblia. É autor de diversos livros, palestrante e professor de Teologia. É o administrador pedagógico do Instituto CRER & SER e atua como gerente no NEAD (Núcleo de Educação a Distância) da Faculdade Unilagos, em Araruama, Rio de Janeiro, onde reside atualmente.

Se desejar, confira todo o Currículo Lattes do professor aqui

 
 
 

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